Querido Destino,
Não me emputeças ainda mais, pois creio que ainda me faltam muitos
anos para viver. Tenho visto que pessoas ruins vivem mais tempo, embora eu
ainda me considere boa de nascença, mas nunca se sabe o que os outros vão
pensar da nossa índole - e, sinceramente, a esta altura estou prestes a perder
a noção do aceitável. Na flor da idade estou em pleno orgasmo e tudo que vejo à
minha frente é um vale de preguiça e pesar. Já perdi o medo da morte, senhor
Destino, e já acredito em Deus, mas continuo infelizmente me achando esta titica
de galinha, o que se confirma quando me chamam de galinha e quando as meninas
me lançam aquele olhar fuzilante de fêmea correta ameaçada. Hoje em dia de
tristeza não me deito mais no leito vazio do meu quarto, nem faço jejum.
Justamente de tristeza é que dou para todo mundo, é de tristeza que esqueço do
amor idealizado, de tristeza é que engordo. Com esses quilos a mais só evito me
olhar no espelho e curvar as costas, para que não sinta o atrito da gordura. Eu
ainda tenho uma tese que consiste em que sou boa mesmo, e tão boa que me
preocupo dos outros me acharem ruim. Uma puta mesmo deve ser ruim, mas eu sou
mestiça, sou média e sou mezzosoprano. Sou loira tingida e bronzeada
artificialmente; uso silicones e tenho um piercing na língua. Sou de luxo, mas
sou falsa.
Por que estou falando isso? Uma declaração destas agride as
pessoas. É que o senhor é o único que pode me ouvir, mesmo que não dê
importância; é que alguém nos tempos tenros de juventude me caluniou e embora
não acreditando no início passei a acreditar depois no que me disse, porque a
pior coisa é ouvir certas coisas de quem você ama; é como uma ferida que parece
nunca sarar e quando sara vira uma cicatriz em relevo, que dá choque e cada
choque pode interferir nos processos do pensar.
Sou tão boa que escondo minhas dores dos outros o quanto posso e
vou acreditando que sou feliz. Dizem que isso é ser superficial, mas é porque
não reparam nas minhas olheiras. Em resumo, sou um erro, sou ilegítima. Minha
mãe me teve dentro de um avião enquanto cruzava a África e meu pai quando me
viu ficou tão emocionado que se jogou de lá de cima caindo bem em cima de um
elefante... o azar foi que um passarinho infectado cagou em sua cabeça e as
fezes escorreram para os seus olhos. As mucosas são tão sensíveis... Meu pai
ficou por lá. Por isso minha mãe me nomeou Queda, depois ironicamente meus
amigos do bairro passaram a me chamar de puta Queda. Mas eu era passiva e tudo
aceitava; vivia em mim, por isso mesmo talvez depois quis estudar geologia. Não
concluí os estudos porque era indolente e gostava das coisas fáceis. Se ao
menos sobre mim pudessem brotar plantas e flores me sentiria muito útil dentro
de minha passividade, mas precisa-se fazer algo quanto humana. A vida cobra
afazeres e gosta dos atarefados. Acho que ela dá amores aos de nascimento
comum; a mim que podia ter caído do avião se minha mãe se descuidasse a vida
não me deu amor nenhum, só esperanças. De esperanças... não se vive, se oca.
Penso que um buraco negro é como é porque um dia foi um pensamento de querer
ser estrela; este pensamento não vingou e por não vingar e ter esperanças
ele engoliu a si mesmo encontrando o vácuo secreto que faz as coisas
desaparecerem. Um dia virei a ser quem sabe um buraco negro e ganharei
notabilidade. Ficarei conhecida como a mulher que engoliu a si mesma e o buraco
negro será o resultado de uma puta Queda.
Toda essa conquista enche meus olhos, senhor Destino, mas queria
me encher de algo mais por esses dias. O que te peço silenciosamente se o
senhor me der aceitarei, mesmo por poucos dias, como uma espécie de férias, mas
não me emputeças ainda mais, agora não: faz sol.
Esperançosamente,
Queda de Deus.
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