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quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Carta de uma puta ilegítima


Querido Destino,

Não me emputeças ainda mais, pois creio que ainda me faltam muitos anos para viver. Tenho visto que pessoas ruins vivem mais tempo, embora eu ainda me considere boa de nascença, mas nunca se sabe o que os outros vão pensar da nossa índole - e, sinceramente, a esta altura estou prestes a perder a noção do aceitável. Na flor da idade estou em pleno orgasmo e tudo que vejo à minha frente é um vale de preguiça e pesar. Já perdi o medo da morte, senhor Destino, e já acredito em Deus, mas continuo infelizmente me achando esta titica de galinha, o que se confirma quando me chamam de galinha e quando as meninas me lançam aquele olhar fuzilante de fêmea correta ameaçada. Hoje em dia de tristeza não me deito mais no leito vazio do meu quarto, nem faço jejum. Justamente de tristeza é que dou para todo mundo, é de tristeza que esqueço do amor idealizado, de tristeza é que engordo. Com esses quilos a mais só evito me olhar no espelho e curvar as costas, para que não sinta o atrito da gordura. Eu ainda tenho uma tese que consiste em que sou boa mesmo, e tão boa que me preocupo dos outros me acharem ruim. Uma puta mesmo deve ser ruim, mas eu sou mestiça, sou média e sou mezzosoprano. Sou loira tingida e bronzeada artificialmente; uso silicones e tenho um piercing na língua. Sou de luxo, mas sou falsa.
Por que estou falando isso? Uma declaração destas agride as pessoas. É que o senhor é o único que pode me ouvir, mesmo que não dê importância; é que alguém nos tempos tenros de juventude me caluniou e embora não acreditando no início passei a acreditar depois no que me disse, porque a pior coisa é ouvir certas coisas de quem você ama; é como uma ferida que parece nunca sarar e quando sara vira uma cicatriz em relevo, que dá choque e cada choque pode interferir nos processos do pensar.
Sou tão boa que escondo minhas dores dos outros o quanto posso e vou acreditando que sou feliz. Dizem que isso é ser superficial, mas é porque não reparam nas minhas olheiras. Em resumo, sou um erro, sou ilegítima. Minha mãe me teve dentro de um avião enquanto cruzava a África e meu pai quando me viu ficou tão emocionado que se jogou de lá de cima caindo bem em cima de um elefante... o azar foi que um passarinho infectado cagou em sua cabeça e as fezes escorreram para os seus olhos. As mucosas são tão sensíveis... Meu pai ficou por lá. Por isso minha mãe me nomeou Queda, depois ironicamente meus amigos do bairro passaram a me chamar de puta Queda. Mas eu era passiva e tudo aceitava; vivia em mim, por isso mesmo talvez depois quis estudar geologia. Não concluí os estudos porque era indolente e gostava das coisas fáceis. Se ao menos sobre mim pudessem brotar plantas e flores me sentiria muito útil dentro de minha passividade, mas precisa-se fazer algo quanto humana. A vida cobra afazeres e gosta dos atarefados. Acho que ela dá amores aos de nascimento comum; a mim que podia ter caído do avião se minha mãe se descuidasse a vida não me deu amor nenhum, só esperanças. De esperanças... não se vive, se oca. Penso que um buraco negro é como é porque um dia foi um pensamento de querer ser estrela; este pensamento não vingou e por não vingar e  ter esperanças ele engoliu a si mesmo encontrando o vácuo secreto que faz as coisas desaparecerem. Um dia virei a ser quem sabe um buraco negro e ganharei notabilidade. Ficarei conhecida como a mulher que engoliu a si mesma e o buraco negro será o resultado de uma puta Queda.
Toda essa conquista enche meus olhos, senhor Destino, mas queria me encher de algo mais por esses dias. O que te peço silenciosamente se o senhor me der aceitarei, mesmo por poucos dias, como uma espécie de férias, mas não me emputeças ainda mais, agora não: faz sol.

Esperançosamente,
Queda de Deus.


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